"OS OUTROS - TRAGÉDIA EM QUATRO ATOS"
"OS OUTROS - TRAGÉDIA EM QUATRO ATOS"
I
"OCUPAÇÃO"
No planeta imaginado
Por trinta milhões de seres humanos,
Algures, numa estreita margem do Mediterrâneo,
Começou, há dois mil e seiscentos anos,
Um país chamado Curdistão
Ou, talvez, quem sabe, deveria ter começado.
Madrasta foi a História deste povo,
Ocupado por impérios e tiranos.
Avaros os vizinhos sempre o cobiçaram
E a terra que nunca foi país,
Acabou por ver-se repartida…
Nas margens da Europa,
Pelo raiar da Ásia,
Ele se ergueria sob a égide de Alá,
A Norte a Turquia Otomana,
Com desejos de poder,
A Oeste a Arménia e o Azerbaijão,
Famintos de território,
A Sul o Irão,
Fanático no crer e no crescer,
A Este o Iraque e a Síria,
Com sede de recursos…
Como pode esta gente ter direito à existência, ao território?
O que pensam os judeus deste direito?
E a América e o imperador careca, esse Putin?
A culpa nunca é de ninguém, são sempre "OS OUTROS"…
Depois chegou o ISIS, o DAESH, o Estado Islâmico,
Não interessa o nome,
Apenas importa que rima com terror,
Ocupando o ocupado,
Terras queimadas para um grande Califado,
Vidas ceifadas pelo fanatismo enlouquecido
E sem qualquer pudor
Publicitadas na imprensa, na net e nas televisões,
Qual algodão que não engana
Porque a saga garante o verdadeiro horror…
II
"MIGRANTES DEPOIS DE REFUGIADOS"
Entre bombas, escombros, sangue e tripas,
Foge quem pode porque a guerra é cega,
Não vê mulheres nem crianças,
Não vê nada nem ninguém.
A música virou ruido e o ruido trovão;
O povo não quer Bashar al-Assad nem o Estado Islâmico,
Quer uma Síria de paz dizem os sírios,
Quer um Estado Curdo gritam os oprimidos,
Mas o Estado é surdo seja Islâmico ou não.
A guerra veste de santa, clama justiça
E todos se dizem senhores da razão e da verdade,
Mas ninguém dá ouvidos a ninguém;
Morrem civis aos milhares, gente de carne e osso,
Sem limite de idade, de género, de etnia ou de religião,
Morrem porque estavam ali, no local errado,
Na hora errada, apenas e mais nada.
Perante a atrocidade dá-se a debandada
E o povo foge, procura refúgio
Nos países mais perto, mas é enlatado
Em campos de fome e aperto,
Sem condições são refugiados que parecem presos,
Tratados a monte na beira da vida…
E honrosas exceções não fazem a regra,
Nem estancam a ferida aberta pela guerra.
Só de Kobane, de Ain al-Arab, da fonte dos árabes,
Centenas, milhares, quase meio milhão,
Fugiu, deixou tudo, que a fonte secou,
Procurando o direito a não morrer,
Sem explicação ou sentido,
Com os filhos pela mão vazia de pão…
Chegados à Turquia, interesseira, vizinha,
São refugiados, amontoados, e serão tratados de qualquer maneira,
Sem dignidade, consideração ou sentimento …
E às portas da Europa, qual El Dourado,
Viraram migrantes, na busca de luz, de vida, de paz.
III
"VIAGEM PARA O PARAÍSO"
Perante os migrantes vindo do Oriente,
A Europa justa vai abrir os portões,
Dizem os lideres da União Europeia,
Criam cotas, repartem apoios, vão à televisão…
Mas a verdade esconde-se, abriga-se,
E o que se fala nada quer dizer, nem tem tradução;
Mas todos prometem intensões tão boas,
Numa teoria que jamais será Tese, Lei ou Saber.
Aceitam milhares, dizem os jornais,
Mas fazem-se muros que é farpado o arame,
Entram meia dúzia, um pouco mais, mas de pouco não passa,
A custo, a medo, que a vergonha não esconde a cara…
Impera o cinismo, dizem que é cedo,
Mas para os migrantes o tempo parou,
E tentam entrar de qualquer maneira nessa Europa
Onde solidariedade se escreve a borracha,
Onde esperança é palavra oca que o vento varreu…
Por entre os milhares, fugidos da Síria curda,
Entre fome e sangue, entre dor, pânico e sobrevivência,
Uma família que o lar perdeu na perdida Kobane,
Já na Turquia, procura uma forma de chegar à Grécia, a Kos,
Nem terra, nem ar, que apenas o mar é solução…
E ali, em Bodrum, a dois passos da Europa,
Um casal com dois filhos decide arriscar,
Um entre os milhares que já são milhões.
Da praia de Ali Hoca partem de barco feito borracha
Que apaga vidas…
Onde cabem dez viajam cinquenta,
E dá-se a tormenta, o naufrágio, mais um,
Sobrevive o pai, sucumbe a mãe e as duas crianças,
De três e cinco anos que a idade é tenra
Mas a morte não.
A viaja acaba, como começou, em calamidade,
Igual a tantas outras que a precederam,
E assim chegaram, todos ou quase, por fim, finalmente,
A um paraíso que não tem país.
IV
"O MENINO DE KOBANE"
Uma imagem vale mais que mil palavras,
Dizem, por aí, os entendidos.
Foi assim no Vietname onde uma menina,
Fugindo na estrada de uma guerra vil,
Vestia napalm sobre a pele nua. Kim Phuc,
já fez cinquenta e três anos,
Mas será sempre a Menina de Napalm…
Agora outra imagem invade-me o lar,
Desta vez, para além de uma fotografia,
Existe um filme que me mirra a existência,
Enquanto as imagens me turvam a mente, o olhar e o ser,
Porque, como muitos, outros talvez não,
Sou um ser humano, que sente na alma,
No corpo e no coração a raiva irracional
Perante algo que nem tem explicação.
Turquia, Bodrum, praia de Ali Hoca Burnu,
É de lá que chegam as imagens malditas,
Transmitidas de manhã, ao almoço, ao jantar,
Vezes sem conta, mas não mudam,
São sempre as mesmas, cruéis e letais…
Já nem preciso de tela para ver o filme
E na minha mente a gravação não tem fim…
As ondas do mar rebentam na areia,
Numa ondulação suave onde a espuma branca
Parece lavar com carinho a praia creme, grão a grão,
E algures na margem, deitado no areal,
Molhado pelas ondas, um menino jaz, três anos talvez,
Rosto enterrado na areia, um corpo pequeno,
Inerte, de braços arrumados bem junto ao tronco,
T-shirt vermelha, calção todo azul, um antagonismo
Que as ondam lavam num ritmo eterno
Sem que aquela mancha se esfume no chão.
Ali jaz Alan Kurdi, três anos de idade, nascido em Kobane,
Curdo de sangue, vitima de guerra, refugiado, migrante,
Islâmico, criança, roubada à vida, nascido para a morte…
O menino de Kobane jamais fará castelos de areia.
Gil Saraiva in O RAIAR DO TERCEIRO MILÉNIO