Registos da Memória - VI - Branca Noiva do Mar - O Barco da Carreira
(Fuzeta, Branca Noiva do Mar – O Barco da Carreira - VI - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
VI
Branca Noiva do Mar – O Barco da Carreira
O barco da carreira, efetua, na Branca Noiva do Mar, entre junho e setembro, o transporte dos adoradores do Sol, da Ilha da Fuzeta (a que alguns chamam de Armona, sem saberem que há muitos anos estas ilhas estiveram separadas), do mar, da praia (hoje sem casas, nem árvores), para o pontão de desembarque na ilha, do outro lado da ria que se diz formosa. Já assim é desde o tempo em que nasci, já lá vão 59 verões, dos quais, mais da metade passados por ali, entre ria e mar, catrapiscando o olho (em tempos de juventude) às moças dessa terra tão minha como dos que nela nasceram efetivamente.
O primeiro grande mestre e capitão desta travessia regular, reza a história e eu confirmo foi senhor Caetano. Um pescador com visão de empreendedor e um coração do tamanho do mundo. Um homem que jamais esquecerei e que ajudou a moldar a personalidade e a estar sempre pronto a ajudar quem mais precisa. Com ele começaram estas careiras, usando o que tinha à mão, um bote grande, uma traineira ou os primeiros barcos realmente desenhados para transportar passageiros, enfim, fosse o que fosse, para permitir que os visitantes da Branca Noiva do Mar não saíssem da terra com as expetativas goradas pela falta de acesso à ilha.
Aliás, foi dele, durante muitos anos, o primeiro bar da praia, onde era possível comer peixe e marisco fresco a qualquer hora do dia e quantas vezes à noite (que saudades). Depois veio o tempo dos concursos públicos e a família Fortunato tornou-se dona da travessia. Eram vários irmãos na gestão do negócio, pescadores simples, gente boa, mas sem o mínimo de conhecimento do que significava a palavra anfitrião ou mesmo o que poderiam ser as normas sociais da boa educação. Eles que foram durante anos seguidos conhecidos por serem “Os Reis da Ria”, com tudo o de bom e de mau que uma monarquia pode significar num serviço destes, feito sazonalmente, durante o verão.
Quando, por vezes, na maré vazia, o barco encalhava nos bancos de areia, carregado com o dobro da sua lotação, lá saltava o Fortunato, o que usava o nome da família como se fosse nome próprio, para a água e pela força do seu tronco, pernas e braços, se desencalhava a embarcação e seguia a travessia. Chegados à ilha era capaz de despachar uma grade de minis, só para recuperar as forças perdidas no exercício anterior. Seguiram-se outros, ligados por laços de matrimónio, à família Caetano, sendo o Edgar o rosto da organização, um homem ligado ao mar pela sua função estatal às pescas. Ainda são eles que gerem as travessias do barco da carreira, agora com melhores barcos, mas ainda com pescadores ao leme, como manda a boa tradição. A todos, aos bons e menos bons a Branca Noiva do Mar sempre prestou tributo. Porém, no meu coração, ainda brilha a imagem, dos tempos de menino, do senhor Caetano ao leme do barco da carreira (quantas reprimendas eu ouvi de me atirar do tejadilho do barco da carreira para a água e só voltar à superficie perto de terra firme, minutos depois), costumava dizer: "- Um dia o menino falha o salto e a élice corta-o às postas". Afirmava de sobrolho preocupado o senhor Caetano...
Gil Saraiva