Serve este local para tornar visível o pensamento do último dos vagabundos que conheço: EU!
Aqui ficarão registados pensamentos, crónicas, poemas, piadas, quadros, enfim, tudo o que a imaginação me permite
Serve este local para tornar visível o pensamento do último dos vagabundos que conheço: EU!
Aqui ficarão registados pensamentos, crónicas, poemas, piadas, quadros, enfim, tudo o que a imaginação me permite
(Braga Branca – Neva no Bairro - X - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
X
Braga Branca – Neva no Bairro
A neve cai farta no bairro castanho claro onde habito naquele dia de Braga Branca. Um bairro que, reparo agora, é igual a si mesmo, bloco a bloco, edifício a edifício, nas vizinhas torres que o constituem. Parece amorfo. Agora que o vejo no contraste com a neve que brilha enquanto cai, concluo, pela monotonia dos edifícios que, na origem, aquele devia ser um por certo um bairro social, periférico até, que aos poucos foi sendo engolido pela cidade e se tornou mais caro pela proximidade das artérias que o levam ao coração de Braga e às saídas estratégicas da cidade.
Um bairro social pareceu-me bem. Para mim, então, é maravilhoso, pois que me considero um ser bastante social também. Depois de olhar bem há minha volta concluo que o arquiteto deve ter desenhado apenas um edifício e depois repetiu o modelo a duas cores, a de burro quando foge e a de burro quando anda, ou seja castanho claro e castanho ainda mais claro. Que trabalheira deve ter tido o inventor daquele espaço, pensei. Deve ser fastidioso distribuir, por uma área tão grande, prédios todos iguais, apenas a dois tons. Para sorte dos atuais residentes, na altura, deveriam estar na moda da solidariedade social os largos amplos, para os filhos dos sociais poderem brincar na rua.
Os largos deram lugar aos jardins, relativamente simples, mas bem cuidados, em volta foram feitos estacionamentos para quem não tem garagem e assim evoluiu aquela zona da cidade. Antigamente deviam existir até mais espaços livres, porém, agora, estavam ocupados por armazéns de um único piso, enormes, prontos para fazer escoar qualquer tipo de mercadoria para o Porto ou um qualquer outro destino. O meu pensamento regressa à neve que não para de cair. O asfalto da rua fica molhado, parecendo realçar o negro do alcatrão, a combinar com os troncos das árvores despidas de folhas, erguendo os troncos em preces celestiais que não se escutam. Neva no Bairro e eu sorri feliz.
(Braga Branca – Vermelho e Branco - IX - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
IX
Braga Branca – Vermelho e Branco
A marca vermelha na paisagem só podia ser artificial. Do outro lado do jardim, naquele dia 9 de janeiro de 2009, em Braga, quando a neve pintava anormalmente tudo de um branco uniforme, aquele ponto vermelho não parecia natural. Segui, pelo caminho de pedras escuras e acastanhadas, até ao lado oposto do jardim. Uma vez aí o ponto tornou-se nítido e perfeitamente identificável. Um vermelho imaculado mostrava a traseira de um automóvel com a nitidez geométrica do designe de marca.
Não se viam vidros nem tejadilho, toda essa superfície recebera a neve como um tapete alvo e brilhante, como que a desejar realçar o rubro da chapa da viatura. O prateado da marca era, aquela distância, perfeitamente visível, bem como o conjunto simétrico dos faróis traseiros. Todavia, o grande destaque era aquela traseira vermelha, gritando vida, embora a viatura descansasse inerte no estacionamento. O vermelho e branco combinavam em harmonia perfeita. Obra humana e natureza, sobrepostas em camadas, como se de um bolo se tratasse.
Esteticamente o conjunto era simultaneamente bonito e perfeito. Havia outras viaturas que se viam paradas no jardim, porém, aquela era a única com a visibilidade do fogo em dia de gelo. As outras escondiam-se amorfas na neve, como que envergonhadas perante o destaque vibrante daquele vermelho e branco. Sorri, ainda fiz um comentário em voz alta para o meu ego. Só aquela paisagem surreal para me pôr a namorar a traseira de uma viatura cujo símbolo, embora conhecido, nem a marca do fabricante me fazia lembrar. Se ao menos eu tivesse reparado na traseira de uma dama, vestida de vermelho caminhando por entre o branco da neve…
(Braga Branca – O Caminho - VIII - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
VIII
Braga Branca – O Caminho
O caminho parecia diferente. Das centenas de vezes que eu, naquele bairro de Braga, tinha atravessado aquele troço, nunca, até àquele dia de 9 de janeiro de 2009, o trajeto se evidenciara tão incrivelmente bonito. Retângulos e quadrados de pedra ou de betão, de tom acastanhado, desenhavam vias que se destacavam na neve, parecendo apontar para locais perdidos no infinito branco que cobria quase por completo todo o chão.
Porque teria a neve poupado aquelas artérias da sua gélida presença? Seria possível que as pedras tivessem, durante a noite, resguardado um pouco do calor do Sol que brilhara na véspera, derretendo os flocos matreiros que se tivessem atrevido a tentar cobri-las? Fosse pelo que fosse em todo o jardim o cenário repetia-se. Todas aquelas pedras, que construíam verdadeiras artérias por entre o verde da relva, agora branco da neve, estavam à vista.
Era como se o caminho se tivesse finalmente querido afirmar. Mostrar orgulhosamente a sua existência e finalidade. Com o olhar percorri a área. Uma teia de retângulos e quadrados atravessava com vaidade todo o pequeno parque. Vi trajetos de cuja existência nunca me apercebera. Porém, naquele dia, eram tão evidentes como as poucas notas que eu sabia existirem na minha conta bancária, destacando-se com brio e valentia.
As pequenas vias de uma só pedra, em fila, lembravam membros saídos de um tronco principal. Decidi contar a passos todos os percursos. Quando, por fim, cheguei ao fim, fiquei surpreendido ao descobrir que percorrera mais de três quilómetros. As coisas que eu descobria só porque a neve decidira cair naquele dia. Como na vida, cada trajeto levara-me para um ponto diferente, rumo a um destino diversificado. Como na vida a escolha era minha…
(Braga Branca – Letras de Sal - VII - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
VII
Braga Branca – Letras de Sal
A neve, sobre o arbusto de tons rubros, ocres e principalmente verdes, parece desenhar letras de sal, tentando transmitir a mensagem gelada de uma Braga, onde o frio se fez sentir de modo extremo, nos idos de janeiro de 2009. Com facilidade os meus olhos descobrem símbolos que parecem letras desenhadas toscamente sobre a natureza, facilmente vejo o xis, o i, o u, o pê, o tê, o vê e o ípsilon, com alguma atenção descubro ainda o ó, o eme, a letra ene e o à. Em esforço ainda descortino o cê, o jota, o agá, a letra ele, e a esse, mas deve haver outras escondidas entre as deformações cristalinas daquelas gélidas letras de sal, expostas ao frio da manhã, no topo do arbusto, que serve de base à estranha escrita.
Poderá aquilo ser uma mensagem vinda de outra dimensão? Estará escrita em português? Porque é que aquela neve se parece tanto com uma escrita salgada? As letras de sal não me respondem às interrogações. Em certa parte, parece-me estar escrito um “Yes”, mas, noutros lados, os caracteres são como letras chinesas, desenhadas com aprumo, porém, esborratadas pela cristalização daquele sal fingido. Concluo que, a ser uma mensagem, deve ser multilingue e eu não sou um poliglota. O pior de tudo é que o arbusto é grande e o texto ocupa toda a superfície. Não tenho máquina fotográfica capaz de registar toda a mensagem.
Fecho os olhos, abro-os novamente e repito a operação por diversas vezes. A coisa não está fácil. De súbito sinto uma serenidade intensa me invadir a alma. Volto a fazer a mesma experiência e, finalmente, descodifico o recado gélido. Não com o olhar, nem com o entendimento dos grafismos, mas apenas fazendo uso da alma e do coração. Aquela é, sem qualquer hesitação ou sombra de dúvida, uma mensagem de paz. Sinto-a no brilhar dos cristais do sal ou do gelo no interior do meu ego, lá bem no âmago de mim. O cintilar espiritual acompanha o fulgor que os meus olhos tinham visto. Exposto esse facto abandono o local com o coração aquecido pela tradução desvendada e parto sorrindo.
(Braga Branca – Folhas Verdes Com Açúcar - VI - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
VI
Braga Branca – Folhas Verdes Com Açúcar
A neve a cobrir as folhas dos pequenos arbustos de plantas lembra a quem observar atentamente estes canteiros de jardim, uma ornamentação verdejante decorada com uma fina camada de açúcar em pó. É impressionante a distribuição homogenia da neve em toda a área. Não é difícil de imaginarmos um mestre pasteleiro a distribuir meticulosamente o açúcar pelas folhas, com a mestria que apenas muitos anos de prática lhe conferem.
É também relativamente fácil imaginarmos que por baixo desta esbelta cobertura de verde branco e alguns castanhos alaranjados, existira um esplendoroso bolo pronto a ser devorado pelos apetites vorazes dos verdadeiros apreciadores de tais iguarias. Todavia, a realidade gelada de um nevão atípico em Braga é o que realmente explica inequivocamente o presente registo fotográfico. É simplesmente neve em cima de um arbusto de jardim e nada mais do que isso. Pode não ser tão fascinante, mas não deixa de ser belo e singular.
(Braga Branca – Pinheiros de Natal - V - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
V
Braga Branca – Pinheiros de Natal
A neve caía, naquele dia 9 de janeiro de 2009, branca, pura, cristalina, mas o dia continuava teimosamente nublado escuro, taciturno e enervante. Ali, perto de casa, eu ia registando o fenómeno, raro, ocasional, de o frio conseguir fazer-se acompanhar pela neve naquela cidade que raramente a vê. Chegam a passar décadas entre visitas dessa dama branca e fria. De máquina fotográfica em punho fui procurando na paisagem que me era nova e surreal captar cada detalhe, sem um porquê, apenas por o dia era diferente de outros dias.
A dada altura, no meio do pequeno jardim do bairro, deparei-me com três árvores, decoradas de branco, no meio da névoa ensombrada pela neblina densa. Aparentavam ser Árvores de Natal. Três Pinheiros de Natal altivos, majestosos, difíceis de enquadrar numa só fotografia, com a máquina rudimentar que me acompanhava. Num segundo olhar apenas o maior me pareceu, afinal, ser um pinheiro, mas o trio realmente lembrava Árvores de Natal, quais Reis Magos, chegando atrasados ao evento, 19 dias depois da sua celebração.
Pena era que o dia estivesse tão nublado, escuro e sombrio, encoberto por aquela névoa feita neblina, que parecia desfocar a paisagem, sujando de sombras o branco que caía em flocos. Tentei por diversas vezes registar o momento. As fotografias saíam invariavelmente como que desfocadas e manchadas de penumbras irritantes. Ia para virar costas quando um raio de Sol caiu, como que por milagre, sobre aquela parcela de natureza altiva. A árvore central brilhou ainda mais do que as outras e eu entendi porque é que Natal é quando um homem quiser. Tirei a foto e sorri com a mesma alegria de alguém que, no aconchego do lar, acaba de enfeitar a sua Árvore de Natal e contempla. Que sorte…
(Braga Branca – Pegadas - IV - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
IV
Braga Branca – Pegadas
Olhei para trás, a meio do meu passeio pela alva neve, e dei-me conta das pegadas nítidas, vivas, bem marcadas no solo. Parecia que uma entidade invisível me seguia os passos com uma precisão de relojoeiro de uma marca dispendiosa de contadores do tempo. Voltei a olhar para as marcas no chão, decorei bem os detalhes do desenho e finalmente, respirando fundo, levantei um pé dobrado para trás e confrontei as marcas com o designe da minha sola…
As marcas no caminho e o formato da sola eram efetivamente coincidentes. Não havia, portanto, nenhum ser estranho a seguir-me e aquelas eram as minhas próprias pegadas e nada mais do que isso. Ri-me, fiquei com a certeza de que andava a ler demasiados mistérios do oculto. Olhei a paisagem tentando seguir meus passos, a uns metros, na última curva que fizera, um rasto de pegadas secundava as minhas, pior, até onde a vista alcançava o segundo trilho de marcas no chão seguindo paralelo ao meu. Parava apenas na última reta e não seguia para lado algum.
Avancei uma vez mais seguindo o meu trajeto. A minha mente desviou-se para o objetivo da minha próxima foto e continuei o meu trabalho. Meia hora depois, já de chave na mão à porta de casa lembrei-me das pegadas e olhei para trás. O segundo rasto seguira-me até ali. Desta vez não se ficara a uns metros de distância. Senti um arrepio subir-me pela espinha, atabalhoadamente abri a porta do prédio, entrei e fechei rapidamente a mesma atrás de mim. Solitariamente umas marcas de pegadas afastavam-se do meu ponto de visão. Não havia mais ninguém nas redondezas…
(Braga Branca – Verde e Branco - III - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
III
Braga Branca – Verde e Branco
A sequência de catos, naquele canteiro de jardim urbano, cobertos de neve traz à memória a inevitabilidade gélida da instalação da neve em locais onde ela normalmente quase nunca se faz notar. Foi assim com Braga, nesse tempo remoto do final da primeira década deste novo século e milénio, corria o dia 9 de janeiro de 2009. O nevão anterior ocorrera 20 anos antes, ainda na década de 90 do século passado.
A imagem do verde dos catos carregados de branco, parece paralisar a vida de surpresa. O canteiro urbano, encostado à parede branca de um edifício, aparenta querer camuflar-se na paisagem, quiçá na tentativa de passar despercebido. Uma pegada, impressa na neve, no canto inferior direito da fotografia, confirma que foi em vão esse esforço de encobrimento daquela sequência de flora adormecida.
(Braga Branca – O Ténis - II - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
II
Braga Branca – O Ténis
Neste registo invulgar de uma cidade de Braga coberta de neve, mesmo no pico do inverno, há sempre algo que ainda se torna mais surpreendente do que o próprio fenómeno climático em si. Neste caso, a descoberta de um ténis invertido na relva, coberto da camada branca do último nevão na cidade foi algo de surpreendente.
O que faria aquele ténis ali? Não se vislumbrava por perto aquele que deveria ser o seu inseparável par, e o ar de abandono no gelo parecia querer gritar tragédia nos confins da minha imaginação. Teria sido abandonado ou perdido? Se fosse abandonado, no meio daquele terreno não parecia fazer sentido. Quem é que se desfaz de uma única unidade do seu calçado a meio de um qualquer percurso? Se fosse perdido cheira a crime, a mistério, a alguém em fuga a quem o ténis saltou fruto do acaso durante a possível debandada por motivos sinistros e pouco legais.
Fiquei, parado no tempo e no espaço, a pensar naquilo…
(Braga Branca – Folhas - I - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
I
Braga Branca - Folhas
A imagem podia ser de um qualquer ponto mais elevado ou frio do país este inverno. Contudo, foi tirada há mais de 12 anos, também na estação fria, na cidade minhota de Braga. Uma terra onde vivi por algum tempo, perdido nos desabafos de um vagabundo, ao abrigo de uma relação quente, forte e sincera que deixou laços para uma vida.
Haveria, nesse ano de rumar ao Sul, em busca do ameno brilhar do Sol, que jamais cobrirá de gelo as folhas do arvoredo, telheiros, ruas e caminhos. Mas a saudade branca ficou presa nos registos da memória que guardamos no âmago do ser, do ter e do existir. Saudades de Braga Branca…