72. Beijo Cigano , roubado em noite sem Lua pelas raias da vida, cabelos ao vento brandindo florestas ocultas no breu. Beijo apanhado, quase ilegal, escondido de todos, família ou lar… Nada mais importa do que esse beijar. Beijar vagabundo de um haragano, que alazão selvagem não se deixa domar. Beijar cegamente num beijo profundo, que vem do instinto, que vem do amar. Beijo apropriado feito destino à luz da fogueira por entre sombras ocultas. Uma só maneira de chegar primeiro ao beijo que a alma parece cantar. Beijo lançado por cartas sem rumo que traçam destinos sem os traçar. Beijo feito de sinais de fumo que um beijo assim é de contrabando, é forte, é intenso, é de recordar, pode ser meigo, mas não é brando, pode ser vida, mas pode matar...
XIII
"SEXTO SENTIDO"
Se eu fosse um mouro,
Em seu castelo erguido
Na Serra que da Lua
Tem o nome e o sentir,
Gritando, lá do alto,
Sortilégios esotéricos
Ao povo Luso que a Serra invade,
Com sede de terra e de poder,
Para esse espaço a sangue,
Ferro e fogo conquistar...
Se eu fosse um nigromante,
Feiticeiro da Serra da Lua,
Qual mago que um tambor
Rufando enche de glória,
Senhor de Áfricas
Sem fim ou sem princípio,
Soberano dos vivos
E dos mortos evocados,
Dono da negra magia do Passado,
Podendo, com meus dons,
Fazer parar as leis da guerra,
Que os continentes
De todo enfeitiçaram...
Se eu fosse o vento
Que mais forte sopra,
No altivo castelo da mourama,
Na noite tempestiva de invernos
Perdidos entre lareiras
Que as memórias não consomem,
Por mais alto
Que arda a chama,
Por mais calor
Que a lenha produza...
Imperador de tufões,
De vendavais,
Rei do sopro
Que não se esgota nunca,
Por muito que me venha zumbir
Dentro da alma,
Sussurrando-me aos ouvidos
Desesperos de infinito,
Que parecem competir
Com a velha eternidade...
Se eu fosse a dança,
Que dança e não balança,
Em sete véus mágicos de moura,
Em movimentos de ondulante ritmo,
Marcado em cada passo,
Em que a forma acompanha o som,
Como se a perfeição
Estética da vida
Pudesse traduzir a festa
Da evidente humanidade
Ou a música da alegria da vitória,
Um grito mudo de gozo e de prazer,
Que ao Homem faz viver
E reviver no espaço e tempo,
Qual passo de baile
A celebrar eventos mil
Mais do que outros já havidos...
Se eu fosse a bela Primavera,
Terna de ambientes,
Florida nos caminhos,
Altiva no serrado,
Nesse Castelo dos Mouros
Amada a cada volta,
A cada curva,
Destemida e sem receio
De um dia perder a liberdade...
Enfim, uma estação solidária,
Realizada de viva esperança,
Cega de perfumes e odores
Em cada berro de vida
Que me cerca e me transborda...
Se eu fosse, por fim,
A Fortaleza Árabe,
Em Sintra altiva e imponente,
Ou simples mato,
Uma terra de medos,
Mistérios e surpresas,
Fonte de vida,
Abrigo de animais,
Floresta tropical,
Savana, bosque,
Ou ainda até,
E porque não,
Selva africana
Ou charneca em flor...
Se eu fosse tudo isto
E muito mais,
Diria,
Como direi agora,
A mesma coisa simples
E pequena:
"- Guarda só pra ti
Os meus segredos,
Meu amor,
E vive para que eu possa viver,
Pleno de ti,
Que sem ti nada é poder!...
Espera-me nesta vida
E na outra se a houver,
Com os teus braços abertos
Por carinhos,
Enfeitada de sedas e perfumes,
Cetins, veludos
E linhos de encantar
Ou nua apenas,
Qual odalisca que sem esforço
Conquista o temível sultão...
Mas mais que tudo
Ama o vagabundo dos limbos,
Ama Haragano, O Etéreo,
Este eu, cujo discurso
Se perde nas palavras,
Mas que este coração a ti doou,
Porque tu és
O meu sexto sentido!"
Haragano, O Etéreo in Achas para um Vagabundo
(Gil Saraiva)
XII
"QUEM..."
Quem
Tem na esperança
O sussurrar cálido das marés?
Quem
Encontra no próprio reflexo a alegria
De vivo se sentir com confiança?
Quem
Procura sempre o impossível
Sem temer ou mesmo desistir...?
Quem
Sente o nascer do Sol
No crepúsculo insustentável da madrugada?
Quem
Reconhece ser seu o Vagabundo
Perdido nos Limbos pela busca?
Quem
Vê o Haragano na bruma
E lhe reconhece os traços do Éter?
Um só alguém!...
E esse quem
Não tem o que temer,
Por que tremer,
Pois brilha mais alto,
Mais forte e mais além...!
E luta, como luta mais ninguém,
Mesmo na mais temível escuridão,
Acabando por encontrar, por conquistar,
E por sorrir, enfim, ao ver no espelho
A imagem refletora de um futuro
Que em cada segundo se torna presente...!
Que em cada “impresente” renasce em saudade!...
Assim...
Todos saberão conhecer o tal de quem,
Que no sussurrar ameno das marés,
Completará um próximo devir,
Com a forma simples de um sorrir...
Mas será realmente que esse quem,
Com a “imatemática” clareza dos sentidos,
Sente, o amor, sem incerteza?
Mesmo sem temer ou desistir?
Talvez...
Quantos ou quantas acharão sinais
E por engano se julgarão escolhidos?
Só quem acreditar que jamais
A ilógica absurda, de um tão grande amor,
Poderia servir de engodo vil
Ganhará a glória terminal!
E esse alguém terá...
No sussurrar cálido das marés,
Na alegria de vivo se sentir,
Na procura impossível sem temer,
No crepúsculo insustentável da madrugada,
No brilho mais alto, mais forte, mais além,
Na busca perdida pelos Limbos,
E na mais temível escuridão,
A taça da vitória conquistada,
A certeza de saber que o quem
É ele ou ela e mais ninguém!
Para mim,
Apenas importa esse meu quem!
E espero meu amor, querida, meu bem,
Que a taça seja eu e ela tua,
Tal como o infinito é mais além,
Tal como da Terra satélite é a Lua...
E só assim,
Por fim,
Na forma de um sorriso, feito belo,
O meu quem se refletirá da cara nua,
Por provir simples, franco, singelo,
Desse amado rosto, dessa face tua!
Haragano, O Etéreo in Achas para um Vagabundo
(Gil Saraiva)
IV
"ELA..."
Ela
Não podia estar ali...
Talvez...
Nos confins do pensamento,
Longe de tudo...
Não de todos!...
Um rosto jovem no sorrir...
Um rosto,
Com raios de Sol
Caindo nos ombros,
Em cabelos de um ouro
Que brilha no escuro...
O azul do mar
Repousando nas pálpebras,
De uns olhos castanhos
Que brilham também...
Um doce poente
Poisado nos lábios,
De uma boca que arde
E cheira a pecado...
Um luar de prata
Em seu meigo rosto,
De uma Lua Cheia
Que ilumina a serra...
Os traços de Vénus
Moldados num corpo,
Que Gaia quis tão fértil
Como sensual...
O entardecer
Descendo no ventre,
Qual crepúsculo
Anunciando a plenitude...
O sabor a sal
Colando-lhe as coxas,
Húmidas de ansiedade,
De ante prazer...
O toque da seda
Envolvendo os seios,
Tentando esconder
A derme perfeita...
O amor perdido
Em seu terno olhar,
Que busca sedento
Outro olhar igual...
E um ar de oásis
Cobrindo-lhe a pele,
Qual neblina ténue
Desejando Sol...
Ela...
Não podia estar ali...
Talvez...
Perto de alguém,
Imaginário ninguém,
A quem esperava,
Um dia,
Vir a encontrar!...
Ela
Não podia estar ali...!
Não!...
Não existe tal paisagem,
Pois as quimeras
Nunca são reais!
Mas...
Se por força
De acasos impensáveis,
A paisagem
Não for mera miragem...
Se o ocaso
Realmente for poente
Que chega ante meus olhos
Suspensos na exceção,
Então... então...
Então tudo eu dou
Pela paisagem!...
O que sou,
O que fui
E o que serei,
O que tenho
E o que possa vir a ter...
Tudo!...
Porque tudo é pouco
Se puder na paisagem
Meu ser eu colocar...
Num canto,
Ali...
Mas enquadrado...
Ela
Não podia estar ali...
Haragano, O Etéreo in Achas para um Vagabundo
(Gil Saraiva)
III
"AQUI..."
Aqui
Onde a palavra mais se afirma
Como produto social,
A faculdade última
De comunicarmos
Por meio de sinais
Que todos entendemos,
Porque são próprios
Desta comunidade
Que constituímos...
Aqui,
Onde a fala
Se traduz na escrita
Como um acto de utilização
De uma linguagem,
E porque não,
Como a concretização
Do potencial da língua
Passada à palavra...
Aqui,
Falamos...
Escrevemos...
Sentimentos em sinais,
Próprios do grupo
Que constituímos...
Aqui
Traduzimos estados da alma
Em discursos originais,
Vivos e criativos,
Através de combinações livres
Do que somos, sentimos,
Queremos, desejamos
E em última análise
Sonhamos...
Aqui...
Somos,
Nas palavras,
Verdadeiras metáforas
Do que queremos ser...
Configurações tacitamente
Assumidas pela líbido...
Aqui...
Inventamos verdades inequívocas
Provocadas pelo efeito do écran,
Como se da nossa própria visão
Se tratasse...
E nos lugares comuns
Desta linguagem
Afirmamos o grito
Da nossa solidão...
Aqui
Queremos existir
Em felicidade!...
Pura,
Simples,
Essencial...
Aqui
Conseguimos entender
E produzir
Um número infinito de frases
Que nunca antes lemos,
Ouvimos ou pronunciamos...
E porquê?
Porque estamos integrados!...
Aqui...
Somos parte de um todo
Que funciona sem conhecimento
De todas as partes,
Aparentemente anárquico,
Mas obviamente
Interligado a esquemas
Que apenas o nosso subconsciente
Consegue interpretar...
Enfim...
Aqui...
Somos os filhos
De uma mesma alcateia
E ao uivarmos,
Não estamos apenas a venerar a Lua
Que se encontra cheia...
Mas a dizer também aqui
Que queremos amar!...
Haragano, O Etéreo in Achas para um Vagabundo
(Gil Saraiva)
VII
“AS ÁGUAS”
Bebem-se caipirinhas
E sorrisos,
Piropos, adivinhas, muitos risos…
Nas águas da cascata
Da piscina e das praias,
Tudo ao calor resiste e se desnata
Nos biquínis, nas minissaias,
Na chuva que ao cair é catarata
E que minutos depois já se esqueceu
Porque apenas nos lavou o eu…
Ah! Isto sim, é vida!
Águas benditas mais do que água benta,
Que nos fazem esquecer uma partida
Que embora longe já nos atormenta…
Que toquem oboés,
Que dobrem sinos,
Que do velho Sinai desça Moisés,
Que se dance o samba, cantem hinos,
Mesmo após o poente glorioso
Fazer nascer a lua prateada,
Pois tudo aqui é bom, é tudo gozo,
Tudo nos traz a alma embriagada
Neste Portaló feito virtude
Onde cada momento é plenitude…
Haragano, o Etéreo in Portaló
(Gil Saraiva)
"LUAR DE SONHOS"
Chegou hoje branca a noite de luar
Com farrapos de sonhos no horizonte
Envolvendo a serra, monte a monte,
Humedecendo as almas de invulgar
Ambiente de oculto secular...
Chegou hoje branca a noite em alva fonte,
Entre luz e mistério sendo a ponte,
Que a Lua não nos diz como alcançar...
Chegou hoje branca a noite... quase trágica,
Translúcida de seres e sentimentos...
Chegou hoje branca a noite e por momentos
Raiou, em sensual passo de mágica,
Poisando branca em teus olhos tristonhos
E os transformando num luar de sonhos...
Haragano, O Etéreo in Livro de Um Amor
(Gil Saraiva)
"TIMIDEZ"
Vai ao anoitecer haver luar...
Das nuvens nós faremos fértil cama
E servirão cometas, cauda em chama,
Para lençóis tecermos com vagar...
Vai ao entardecer ferver o ar,
Na orvalhada terra cozer lama,
E vai a própria vida arder de fama
Ao sentir duas almas gémeas, par,
Prontas pra se fundirem num só grito...
Vai ao anoitecer tecer a Lua
Mantas de estrelas, capas de infinito,
Só pra cobrir a tua forma nua...
Vai o entardecer nascer cortês
Rendido ao teu sorriso e timidez!...
Haragano, O Etéreo in Livro de Um Amor
(Gil Saraiva)