Serve este local para tornar visível o pensamento do último dos vagabundos que conheço: EU!
Aqui ficarão registados pensamentos, crónicas, poemas, piadas, quadros, enfim, tudo o que a imaginação me permite
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Brasil - Pipa – IV – Pousada da Praia do Amor (Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
IV
Brasil – Pipa
Pousada da Praia do Amor
A pequena tabuleta de madeira, por entre uma multidão de flores, anuncia o que me espera, com a simplicidade discreta de quatro palavras, por entre o verde e os fróis, numa imagem que reflete um conceito perdido pelo rebuliço urbano da Lisboa, que deixei para trás tem alguns dias. Inversamente, ali tudo convida à descontração e ao mais puro e antigo sentimento cantado por poetizas e poetas desde os primórdios até aos nossos dias, ou seja, tudo se conjuga para o amor.
Não é difícil pensar-se em amor quando o vemos escrito numa tabuleta, associado a pousada, um local onde a existência de um leito é evidente por definição e em que, ainda por cima, se evoca também a proximidade de uma praia, que se sonha idílica, pelo nome explicito e tão pouco enganador. Férias é isto mesmo, poder sonhar com aqueles instantes que mais tarde trazemos arquivados no coração, pela pureza dos momentos, pelo significado e justificação que dão à vida.
(Fuzeta, Branca Noiva do Mar – O Largo - X - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
X
Branca Noiva do Mar – O Largo
A Branca Noiva do Mar tem um largo, um espaço que surge a meio da Rua da Liberdade, com uma tradição que se perde nos registos da memória. Atualmente atapetado integralmente por calçada portuguesa e repleto de esplanadas, contornando os canteiros das árvores e as margens das casas, que não se agigantam para além de um segundo andar, embora três pisos já sejam as exceções e não a regra no local.
Ora o largo, cujo nome ignoro, pois sempre o conheci apenas pelo nome singular de Largo é, para além dos restaurantes da marginal, junto à Ria Formosa, e os quiosques com esplanada, ao longo do canal, o ponto de encontro de residentes e turistas, por excelência e mérito, há muitos e muito anos. Sem contar com os outros espaços comerciais e de restauração das duas ruas calcetadas que ali nascem, uma delas apenas com calçada junto ao próprio largo, há vários estabelecimentos que se destacam pela sua tradição naquele local.
Os mais antigos são o snack-bar e restaurante Capri, um ótimo local para petiscar a qualquer hora do dia, até quase ao chegar das badaladas do cimo da igreja a anunciar o fim de mais um dia, o “Club Recreativo Fuzetense” conhecido pelo nome carinhoso de “A Sociedade” onde no interior não era invulgar ver grupos de velhotes jogando cartas ou dominó e senhoras sentadas a fazer malha, enquanto iam seguindo a televisão. Cá fora, uma esplanada serve o melhor sumo de laranja do Algarve das redondezas e ao melhor preço, para além de torradas e outros petiscos para o pequeno-almoço.
De um dos lados, a meio do largo, um restaurante renovado, snack e petiscaria, apresenta-se pelo velhinho nome de “Ti Anica da Fuzeta”, ao seu lado, já na esquina está a livraria-quiosque que deve ter um nome qualquer, mas que todos conhecem pelo nome da família que o explora há duas gerações, o Floriano (que mantem a decoração da última renovação efetuada, algures por volta dos anos 90). Do outro lado na Rua da Liberdade, de frente para o Floriano, está a Padaria da Vila da Fuzeta, com a sua esplanada instalada num chão de madeira e, logo ao seu lado, de frente para o largo, encontra-se a velha Ester, uma espécie de Bazar, quiosque e tabacaria, recentemente renovada e ampliada com duas ou três gerações de tradição, mantendo o espírito “temos tudo, fazemos tudo e somos forretas” da sua fundadora original, a Dona Ester.
Voltando ao largo a outra esquina é ocupada pela popular cervejaria “O Pescador” que é vizinha da melhor pastelaria da Branca Noiva do Mar, a “Pastelaria Trindade”, o meu local de poiso no início de cada dia, para me deliciar com um merengue ou com um dom rodrigo, uma cervejinha, uma torrada e com a leitura do Record adquirido no caminho, à passagem pelo Floriano. Do outro lado do largo, entre o Capri e a Ti Anica da Fuzeta fica o restaurante Iguarias da Vila e na sua frente o velho quiosque dos gelados caseiros que já celebrou as suas 35 primaveras.
Antes dos espaços de restauração junto à ria e ao canal, o Largo, era o coração, a alma e o cerne de toda a vila da Fuzeta. Aqui se ouviu o Zeca Afonso a tocar viola ou viu o Presidente Mário Soares a petiscar umas conquilhas. Contudo, hoje em dia, impõe ainda o vigor suficiente para se manter firme como o ponto central de toda a vila.
Foi neste largo, onde dei alguns dos meus primeiros passos, onde comi as minhas primeiras sandes de gelado de limão e caramelo artesanais, onde circulei de triciclo, qual Hamilton das 3 rodas, antes de iniciar, com consciência, a grande aventura a que se chama viver. É aqui que me sinto em casa, onde me sinto em paz. O Largo é aquele lugar em que me imagino no paraíso e a pensar que gostaria que fosse ali que a aventura chegasse ao fim…
(Fuzeta, Branca Noiva do Mar – O Espelho de Água - IX - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
IX
Branca Noiva do Mar – O Espelho de Água
É comum falarmos em como a água de um pequeno lago num jardim nos faz lembrar um espelho. Sem correntes ou ventos que a perturbem o líquido sereno facilmente reflete as copas das árvores e o céu no alto. Porém, poder observar as nuvens do céu, na maré cheia numa ria viva, em movimento, ao sabor do tempo e da corrente, num vasto lençol de água, sem levantar o olhar para o céu, mas apenas mirando o magnífico espelho de água que a Ria Formosa nos oferece é algo profundamente mais deslumbrante e verdadeiramente belo.
São raros os espelhos de água na Ria Formosa, ali, na margem da Branca Noiva do Mar, nesta terra denominada Fuzeta, ainda mais escassos são, mas acontece, em dias de Sol e brisa no exato momento da praia-mar. Aquele instante em que, por sorte, o vento descansa e a maré, acabada de encher até ao seu limite máximo, faz uma pausa para repousar, antes de iniciar a sua longa descida, de mais de seis horas, até à maré vazia. O registo da memória foi tirado mesmo em frente à casa dos meus pais, cujo jardim, em maré plena, fica a menos de um metro do espelho de água, que, quis o destino, foi apanhado pela minha câmara, no dia certo, na hora exata, no local perfeito.
Infelizmente a casa hoje encontra-se ao abandono, herdada pelos meus irmãos mais velhos que, numa hora de debilidade minha, conseguiram excluir-me da herança (mas isso são contas de outro rosário). O que nunca me conseguiram tirar são as memórias daquela que foi a casa onde habitei no final da adolescência, até partir para estudar em Coimbra e mais trabalhar e enfrentar, na invicta cidade do Porto, o meu primeiro verdadeiro contacto sério com o mercado de trabalho por conta de outrem, que nessa altura foi o Estado, mais propriamente a Alfândega (mais outro rosário que não importa para aqui). As memórias do final da adolescência são aquelas que transportamos durante o resto da vida, como um tempo que é o nosso e de mais ninguém.
Ora, as minhas memórias da Fuzeta são minhas e única e exclusivamente minhas. Posso tentar descrevê-las, embebido na aventura que elas representaram para mim, todavia, acho que jamais conseguirei relatar a emoção total que senti ao vivê-las. Eu, a Branca Noiva do Mar, a Ria Formosa e um barco de borracha da marca Zénite, que voava, planando sobre a água numa almofada de ar, ajudado por um motor Mercury de vinte e cinco cavalos e de haste curta. Hoje, ao ver este céu refletido nas águas da Ria Formosa, voltou tudo a esses momentos do passado. O espelho de água fez-me lembrar o jovem rebelde, de sorriso fácil, ao comando de um barco de borracha, com um motor fora de bordo, sem volante, a planar pela Ria Formosa, cabelos ao vento, de pele morena e humedecida pelo calor de Sol e pelos salpicos da navegação.
O meu orgulho era ver aquele barco a ultrapassar os outros, de fibra de vidro, com mais cinquenta cavalos de potência do que o meu. O barco chamava-se “pst” e cada ano que passava acrescentávamos um s ao nome. Já ia em “Pssssssst” no último ano em que o conduzi. Com ele conquistei o mundo, não em termos de globo ou de vastas áreas continentais da Europa, Ásia, África ou Américas, mas o meu pequeno mundo de herói de mim mesmo, onde vivi aventuras sem fim. Conhecia a Ria Formosa como os corsários e piratas de outros tempos conheciam os sete mares e isso bastava-me. Olhei para o espelho de água bem de perto na margem da ria, inclinei-me para ver o meu reflexo e, para meu espanto, vi o rosto feliz de um garoto de 18 anos, de cabelos loiros do Sol, com o sorriso resplandecente da felicidade. Amei o espelho de água…
(Fuzeta, Branca Noiva do Mar – O Salva-vidas - VIII - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
VIII
Branca Noiva do Mar – O Salva-vidas
Não é fácil arranjar um ícone mais perfeito para a Branca Noiva do Mar, essa Fuzeta nas margens da Ria Formosa, do que o salva-vidas velhinho, que no seu lugar se impõe majestoso na paisagem, como que a querer-nos recordar tempos idos de glória, ao serviço do Instituto de Socorros a Náufragos, quando a barra da ilha era quase à sua frente. Um antigamente sempre lembrado por essa presença firme no acompanhamento das marés, sob o comando da Lua, esteja a ria em espelho ou agitada.
Desta vez foi pintado de um amarelo vivo, torrado, quase laranja, dirão alguns. Porém, já foi azul e branco, e outras vezes houve em que apenas o reboco se avistava, até caindo, aqui e ali, deixado ao abandono por causa de uma presença que há muito tempo perdeu todo o sentido. Todavia, pela estima que lhe dá a população, pela quantidade inaudita de fotografias que lhe são tiradas, a pressão mediática tem obrigado as autoridades a um restauro, avulso, mas importante da soberba fachada, das laterais e até dos fundos do idoso, mas imponente edifício, que tenta a todo o custo preservar a dignidade nobre da sua presença evidente na ria, quase na margem da Branca Noiva do Mar que sempre o estimou.
Nesse remoto existir, no antigamente ativo salva-vidas, os barcos de socorro desciam pela sua grandiosa rampa, pintados de branco e vermelho, lembrando que estavam ao serviço da gente do mar, no socorro daqueles contra quem o Atlântico se tivesse revoltado sem motivo. Sim, sim! Porque o salva-vidas existia para salvar vidas de pescadores, de marinheiros, daqueles que do mar tiravam o sustento. Muitas vezes pensei que o desativado, mas nobre, salva-vidas devia ter direito a uma nova vida, quiçá como restaurante ou marisqueira, talvez discoteca ou núcleo desportivo. Mas isto pensei eu e mais de metade dos filhos da Branca Noiva do Mar, que adoram aquelas paredes erguidas em plena Ria Formosa. Contudo, resistindo sempre, nunca o Instituto de Socorros a Náufragos o quis vender ou ceder à exploração. Acho que em segredo, aguarda que o Atlântico abra de novo a barra ali em frente, para que o salva-vidas ser reerga paladino.
(Fuzeta, Branca Noiva do Mar – Golfinhos - VII - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
VII
Branca Noiva do Mar – Golfinhos
As fotos que hoje acompanham estes registos não são das melhores para o álbum das memórias. A culpa é toda minha porque demorei a reparar na chegada dos golfinhos à Ilha da Fuzeta. Quando por fim consegui chegar com a máquina fotográfica pronta a trabalhar, à beira de água, já eles se tinham afastado da costa em demasia. Ainda esperei um pouco a ver se regressavam, mas eles nadavam firmes rumo à Armona, em frente a Olhão, porém, ainda brincaram à minha frente, indiferentes ao meu desespero de já se terem afastado em por demais.
O pior de tudo é que eu sabia que eles andavam pelas redondezas, como sempre. Prova disso é que, junto ao canal, na Branca Noiva do Mar, na outra banda da Ria Formosa, bem ali perto à zona dos embarques para a ilha, vários barcos de turismo, anunciam passeios especiais para se ir ver os golfinhos. Contudo, mesmo com esse conhecimento, nunca pensei que chegassem tão perto da praia. Devo ter estado a menos de vinte metros de um grupo de cinco golfinhos. Três deles ainda infantes, pelo que me pareceu. Adoro estes animais. Gosto imenso de os ver passar ao largo, mas tão perto, isso nunca me tinha acontecido.
O vento vinha de Sul e o mar estava um pouco agitado, eu olhava para um praticante de windsurf distraído e demorei demais a dar por eles. O único consolo foi mesmo ter conseguido fotografar a sua passagem, já mais longe, mas mesmo assim tinha conseguido. Por fim regressei à Fuzeta e fui ver os registos fotográficos no computador. Lá estavam eles, já longe, mas a marcar presença. A Branca Noiva do Mar parecia entender a minha satisfação e trouxe um anoitecer e uma noite dignas de um verão quente, com uma noite estrelada e brilhante. Saí de casa e fui jantar, no restaurante do Capri deliciei-me com uns salmonetes e, quando fui dormir, acho que sonhei com os golfinhos a fazer acrobacias só para me deixarem feliz e estarrecido. Adormeci agradecendo serenamente à Branca Noiva do Mar. Um dia belo o meu, passado junto ao mar.
(Fuzeta, Branca Noiva do Mar – O Barco da Carreira - VI - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
VI
Branca Noiva do Mar – O Barco da Carreira
O barco da carreira, efetua, na Branca Noiva do Mar, entre junho e setembro, o transporte dos adoradores do Sol, da Ilha da Fuzeta (a que alguns chamam de Armona, sem saberem que há muitos anos estas ilhas estiveram separadas), do mar, da praia (hoje sem casas, nem árvores), para o pontão de desembarque na ilha, do outro lado da ria que se diz formosa. Já assim é desde o tempo em que nasci, já lá vão 59 verões, dos quais, mais da metade passados por ali, entre ria e mar, catrapiscando o olho (em tempos de juventude) às moças dessa terra tão minha como dos que nela nasceram efetivamente.
O primeiro grande mestre e capitão desta travessia regular, reza a história e eu confirmo foi senhor Caetano. Um pescador com visão de empreendedor e um coração do tamanho do mundo. Um homem que jamais esquecerei e que ajudou a moldar a personalidade e a estar sempre pronto a ajudar quem mais precisa. Com ele começaram estas careiras, usando o que tinha à mão, um bote grande, uma traineira ou os primeiros barcos realmente desenhados para transportar passageiros, enfim, fosse o que fosse, para permitir que os visitantes da Branca Noiva do Mar não saíssem da terra com as expetativas goradas pela falta de acesso à ilha.
Aliás, foi dele, durante muitos anos, o primeiro bar da praia, onde era possível comer peixe e marisco fresco a qualquer hora do dia e quantas vezes à noite (que saudades). Depois veio o tempo dos concursos públicos e a família Fortunato tornou-se dona da travessia. Eram vários irmãos na gestão do negócio, pescadores simples, gente boa, mas sem o mínimo de conhecimento do que significava a palavra anfitrião ou mesmo o que poderiam ser as normas sociais da boa educação. Eles que foram durante anos seguidos conhecidos por serem “Os Reis da Ria”, com tudo o de bom e de mau que uma monarquia pode significar num serviço destes, feito sazonalmente, durante o verão.
Quando, por vezes, na maré vazia, o barco encalhava nos bancos de areia, carregado com o dobro da sua lotação, lá saltava o Fortunato, o que usava o nome da família como se fosse nome próprio, para a água e pela força do seu tronco, pernas e braços, se desencalhava a embarcação e seguia a travessia. Chegados à ilha era capaz de despachar uma grade de minis, só para recuperar as forças perdidas no exercício anterior. Seguiram-se outros, ligados por laços de matrimónio, à família Caetano, sendo o Edgar o rosto da organização, um homem ligado ao mar pela sua função estatal às pescas. Ainda são eles que gerem as travessias do barco da carreira, agora com melhores barcos, mas ainda com pescadores ao leme, como manda a boa tradição. A todos, aos bons e menos bons a Branca Noiva do Mar sempre prestou tributo. Porém, no meu coração, ainda brilha a imagem, dos tempos de menino, do senhor Caetano ao leme do barco da carreira (quantas reprimendas eu ouvi de me atirar do tejadilho do barco da carreira para a água e só voltar à superficie perto de terra firme, minutos depois), costumava dizer: "- Um dia o menino falha o salto e a élice corta-o às postas". Afirmava de sobrolho preocupado o senhor Caetano...
(Fuzeta, Branca Noiva do Mar – Barracas dos Pescadores - V - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
V
Branca Noiva do Mar – Barracas dos Pescadores
As barracas dos pescadores quase parecem perder-se da vista, num alinhamento em linha reta, todas iguais, financiadas por uma Europa sedenta de normas e de normalização. Algumas guardam os aparelhos de pesca, redes, anzóis, material da faina, botas e fatos próprios para a atividade de quem se dedica ao mar ou à ria, outras, ali, imitam pequenas bancas de venda de artesanato típico daqueles que do mesmo mar fazem sustento todos os dias, existam ou não turistas, que os ajudem a sobreviver um dia mais, com a dignidade que merece quem trabalha.
Aqui ou ali, podemos ver um pescador ou um artesão tratando uma rede, sentado à porta do seu barraco, em tronco nu, que um homem do mar não teme o Sol, apenas partilha com ele e com o mar o respeito mútuo, conquistado pelos anos, nessa terra que será sempre a Branca Noiva do Mar. Algumas motoretas estacionadas em frente às barracas indicam-nos que os proprietários estão por perto. Podem estar a cuidar do barco no canal, que fica logo ali, do outro lado da rua, numa das rampas de acesso a terra ou mesmo ao sabor das ondas provocadas pelos outros barcos que navegam no canal, entrando e saindo, sem cessar.
Assim é a Fuzeta, uma terra sem Covid, e quantas vezes sem lei, porque esta é terra de gente dura, vacinada contra vírus e com uma linguagem ainda muito própria onde “miga” quer dizer amiga e “moce” significa moço. Onde o jovem galã pescador usa os artigos e os pronomes da língua portuguesa como se fossem seus, sem respeito por gramáticas de que nunca ouviu falar, dizendo à sua amada “beija-me da boca” em vez de “na boca” porque é da boca que ele está a falar e “mai nada” afirma perentório porque o “s” não faz falta no “mais” para se fazer entender. Por de trás das barracas em fila, vemos as árvores do parque de campismo, que este ano fizeram companhia à areia que cobre o chão, entre caminhos. Os turistas esses, não vieram em 2020, talvez para este ano, se a sorte mudar. Eles não sabem que a Covid teme o pescador da Fuzeta, como teme a língua afia das suas mulheres. Terra boa esta, terra pura.
(Fuzeta, Branca Noiva do Mar – A Casa Onde Cresci - IV - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
IV
Branca Noiva do Mar – A Casa Onde Cresci
Fica fácil de descobrir, em toda a Fuzeta, aquela que é “A Casa Onde Cresci”. Não sei porquê, mas ela sai do alinhamento das casas que dão para a rua principal da vila, a Rua da Liberdade, antiga Rua Oliveira Salazar. Quem entrar na terra por esta rua e seguir sempre a direito em direção à Ria Formosa, se não contornar ligeiramente a casa, entra com o carro por ela adentro.
Fica numa esquina e é um verdadeiro paralelepípedo, ou seja, trata-se de uma casa de dois pisos, ambos de pé alto, tendo no topo uma açoteia a toda a volta. Na Branca Noiva do Mar é, como não podia deixar de ser, uma casa branca com contornes em bordeaux. Na rua perpendicular fica a entrada principal da moradia, na Rua Doutor Teófilo de Braga. A porta da Rua da Liberdade dá acesso direto à cozinha. No andar térreo ficam as salas a copa e a cozinha e no piso superior os quartos.
Não existem dedos suficientes para contar as memórias que tenho desta casa onde passei todos os verões, carnavais, páscoas e alguns natais até aos meus 14 anos. Poderia até ter nascido aí, porém, devido ao facto de ter um pai médico e uma mãe que o ia ser pela quinta vez, mas na altura já depois dos quarenta anos, o meu progenitor achou mais seguro que eu nascesse em Lisboa. Ainda bem que o fez, pois nasci a precisar de uma câmara de oxigénio, não sei se como forma de protesto por ainda não me apetecer nascer, se por não gostar de chorar no meio de estranhos. Não importa para aqui, de realce é o facto de grande parte das minhas brincadeiras de infância se terem passado nesta casa ou nos seus arredores.
Gil Saraiva
Nota: Tenho um fetiche qualquer com Teófilo de Braga, não foi apenas a rua onde cresci, pois em Campo de Ourique, onde vivo agora, moro a uns 30 metros do Jardim Teófilo de Braga, também conhecido por Jardim da Parada.
(Fuzeta, Branca Noiva do Mar – O Pescador - III - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
III
Branca Noiva do Mar – O Pescador
Não foi consensual a colocação da estátua do pescador na Fuzeta, pois havia quem defendesse que a homenagem não deveria ser feita somente aos pescadores do bacalhau nos mares do Norte ou aos da pescada no mediterrâneo ou a outro grupo específico de homens do mar ou até aos mariscadores, mas sim aos pescadores em geral. Foi preciso argumentar que o homem ali retratado representava todos os que se dedicaram e dedicavam, na pequena vila, às lides do mar e não apenas aqueles a quem a estátua parecia, com evidência, mais aludir.
Com efeito, a Branca Noiva do Mar tem em toda esta gente, em todos estes homens, um exemplo de valentia e coragem que vem do tempo dos mouros ou até dos gregos, dos romanos ou dos visigodos ou de antes até, sendo que existem provas físicas do estabelecimento destes povos por estas paragens, não sendo, portanto, um fenómeno de apenas umas poucas dezenas de anos, que apareceu apenas por altura do início da pesca do bacalhau. Efetivamente, embora os registos históricos comecem a falar da “Fozeta” em 1572, a povoação é bem mais antiga.
Aliás, na época dos descobrimentos portugueses são relatadas as presenças dos seus pescadores a quando da partida das caravelas do Algarve, principalmente com Gaspar Corte-Real, nobre residente nestas paragens, o qual levou o país à descoberta da Terra Nova em 1500. Porém, como pertencia à freguesia de Moncarapacho os registos mais antigos da terra confundem-se e misturam-se com esta freguesia, com que a Fuzeta voltou a ser fundida, nos dias de hoje, numa união de freguesias. Estando na fronteira dos conselhos de Olhão e Tavira, estas freguesias, agora de novo unificadas, já fizeram parte quer do Conselho de Tavira (primeiramente) quer do de Olhão (até à atualidade).
A rivalidade entre a Fuzeta e Moncarapacho tem mais de cinco séculos de existência e foi muito devida à chegada de uma nobreza rica às terras de Moncarapacho enquanto os habitantes mais litorais, em menor número, eram gente que vivia da ria e do mar. Gente esforçada, muito trabalhadora, mas de muitos parcos recursos económicos e financeiros. Gente que não via com bons olhos os novos ricaços de Moncarapacho, a quem vendiam uma boa parte do esforço da sua labuta diária, com a finalidade de sobreviverem, em tempos em que o trabalho não tinha direitos, mas que, pelo contrário, era repleto de deveres. Ora, é ao valor desta força de séculos, dos homens do mar imenso, que a estátua do pescador é dedicada, nesta terra onde às mulheres, de cada vez que um barco parte para a faina da pesca, é pedida a fé e a esperança de voltar a ver filhos, maridos e pais, chegarem de novo a bom porto e de barco cheio de pescado, tão cheio que compense a ausência e o afastamento.
(Fuzeta, Branca Noiva do Mar – Ria Formosa - II - Foto de autor, direitos reservados)
Registos da Memória
II
Branca Noiva do Mar – Ria Formosa
No entardecer a Ria Formosa, na Fuzeta, inspira poetas, músicos, turistas, visitantes e as gentes da vila. A beleza surreal ganha contornes de majestosa, ao enquadrar o velho salva-vidas, disfarçando a falta de reboco e a necessidade de alguns retoques na pintura, que não poucos. Fazendo jus ao próprio nome, a Ria formosa, mistura-se na paisagem com a Branca Noiva do Mar, que se deixa banhar por ela com naturalidade.
É assim, com mais cuidado e urbanismo agora do que em tempos idos, mas a Branca Noiva continua singela, airosa e gaiteira como sempre foi. Nela passou férias Mário Soares, ou não fosse a Fuzeta a terra da esposa, Maria Barroso, até prometeu uma barra em condições aos pescadores, mas memória de político é como Alzheimer em cabeça de velhinho. Aqui cantou, na noite, Zeca Afonso, que sempre vinha com o chegar do verão. Por cá nasceram os Íris, a banda rock que cantava “Beija-me na boca e chama-me Tarzan” com a pronúncia marcante de um Algarve vivo.
A Branca Noiva do Mar e a sua eterna Dama de Honor, a Ria Formosa, são amigas de tempos imemoriais. Juntas construíram crepúsculos que inspiraram fotógrafos, banharam musas sobre as quais poetas escreveram poemas de juras e paixões, deram abrigo aos pescadores vindos da faina dura que é viver do mar. Se um dia o pôr-do-sol tem tons de platina, anil metalizado e sombras brancas ali, no casario, outro desponta, vinte e quatro horas depois carregado de laranjas, vermelhos e amarelos, lembrando um céu de fogo em dia de meninas de minissaia, todas aperaltadas, lembrando os moços que não nasceram para tias. Assim é a Fuzeta, a doce e Branca Noiva do Mar.